domingo, 10 de agosto de 2025

um homem morto num banco na 13 de maio




- Ele está duro.

- Que filhadaputa! Como vamos tirá-lo daí?

-Tem que chamar a polícia.

 

Os dois conversam enquanto dividem um cigarro. Os cigarros ficaram mais fedidos, vagabundos; é o que todos dizem. É a química, são paraguaios, falsos.

-As madrugadas são mais frias porque... ora são os fenômenos físicos, ou químicos?

-Elas são mais frias porque a Terra perde calor para a atmosfera.

-Sim, mas é um fenômeno químico ou físico?

-Pergunta quanto tempo um corpo demora para ficar duro.

 

O homem e seus cães se aproximam, ou antes, os cães vêm antes, correndo; ele vem atrás assobiando, e falando aos cães: Ê, Ô, me espera que vou!

 

-Ele está morto?!

-Sim, durinho.

-Foi uma madrugada fria. bem que a mulher falou: vai ser a madrugada mais fria do ano! Tanto lugar para morrer e ele vem morrer aqui!

-Pois é , eu pensei o mesmo: por que ele não vai morrer na putaqueopariu?

 

Os cães seguem correndo, ele segue atrás, quase gritando:

 

 - Ê, Ô, me espera que vou!

 

- Quantas palavras um cão entende? pergunta aí.

 

Outro cigarro dividido. Encostam-se na parede, lado a lado fumam, conversam diante do banco, do corpo endurecido no banco.

 

- Ele dormia aqui faz tempo.

- Uns dois meses.

- Talvez mais.

- Cem dias.

- Cem dias dormindo nesse banco duro.

- Agora ele está mais duro que o banco.

- Sim acho que ele era duro desde sempre.

- Não entendi.

- Duro, pobre.

- Ah.

 

O homem dos pães fecha a porta do carro com força. a necessidade dele fazer isso é nenhuma. Bate a porta com força, segura forte o pacote dos pães, conversa com os outros de forma ríspida, pesadamente:

- Morreu?

- Mortinho.

- Eles tomam cachaça e morrem. nem sabem que estão mortos, pode procurar aí, hipotermia.

- Oi?

- Hipotermia. Esse idiota não tinha outro lugar para morrer?! Ele deve estar pesado.

 

Um corpo morto não pesa mais que um corpo vivo. Um filme antigo, de relativo sucesso " 17 gramas" serviu de veículo da ideia que um corpo "perderia" 17 gramas ao morrer. Nada pode corroborar com essa visão. Um corpo, aliás, pode parecer até mais pesado, se estiver morto. O "rigor mortis", expressão em latim que significa aproximadamente " rigidez cadavérica" , e que tem uma explicação química, ou seja, de transformações que não são aparentes. As transformações químicas que ocorrem, esse enrijecimento muscular, o "duro" , deve-se, entre outros fatores, ao acúmulo de ácido lático, atletas de fim de semana também tem esse problema. Em síntese a produção desse ácido tem a ver com o metabolismo da glicose, uma demanda maior por energia sem a necessidade de oxigênio. Ora, a transformação física também ocorre: o corpo que está ali, ou antes, estava, ou quer dizer ainda está, é que agora está duro, quer dizer: aquele corpo que estava ali antes, mole, fofo, um bolo de carne, agora é duro como um pedaço de pau, ou uma pedra. Um corpo morto está lá: imóvel, passivo, inerte. O que não é a mesma coisa. As diferenças sutis entre a falta de movimento ou reação são sutis, pouca coisa diferentes, mas merecem destaque, tanto para a semântica quanto para o juridiquês, essa linguagem , um jargão, utilizada pelos rábulas, ou mais apropriadamente, aqui a sintaxe, aqueles que pretendem ao elaborar suas petições, sentenças, ou elaborar resoluções, normativas ou projetos de lei, quando não enrolar , mas na maioria das vezes cansar o leitor, extenuá-lo , confundi-lo, despertar sua ira, ou simplesmente confundi-lo, adiar o fim, gerar suspense ou coisa afins.

 

 A moça da padaria vai passar, uma chance de falar com ela.

 

- Veja, ele está morto.

 

Ela passa. Mais uma vez vai passar sem falar com eles.

 

Trocam de lugar, de ponto de vista. Escoram-se no carro vermelho. Dividem outro cigarro.

 

- Hoje o dia vai demorar mais a amanhecer.

- Sim um fenômeno físico e químico.