"A vida é uma merda e no fim a gente morre"– Beavis e Butthead
consciência de classe
inconsciência cósmica
inexatamente em vós vagueio
Subo a 13, entro na Paulas, viro á esquerda: a Vila Mariana é logo ali.
Entro na loja da Adidas no Largo Ana Rosa. "Adidas a marca mundial das três listras". Uma calça de abrigo, azul com listras prateadas, por 69 pratas. Não compro. Pensar que se matava (eu não me matava, mas desejava) por um pano desses. Continuo fiel a muitas coisas, panos e marcas. Lendas. Ser Bueno descendente de Bartholomeu Bueno da Ribeira e Antonio Rodrigues e do Cacique Piquerobi. Pobreza e superstições. Sonhos e lembranças.
Johan Cruijff na Copa de 74 tirou uma das listras da camisa, não ganharia nada por fazer a propaganda. O esporte, pra mim futebol, o novo Olimpo. Adidas, sonho de consumo adolescente. Fetiche.
Cada vez menos a Vila Mariana é logo ali, como logo ali ficava a Barra Funda.
Maria Louca morava debaixo do Minhocão, quase na Barra Funda, em 1986. “O barulho interno dela é tão grande que ela precisa viver no meio de todo esse barulho pra se agüentar” disse a psicanalista. Betty Milan? Maria Rita Kehl?
Sigo andando sem dar um pio. Tudo muito quieto na Vila Mariana. Andar, como amo andar. Quando morei em Porto Alegre fiz longas caminhadas sozinho. Avenida Ganzo, Menino Deus, lugar quase divino, uma alegria infantil andar em lugares desconhecidos, perder-se. Manuel Bandeira disse que para pensar andava. Eu ando antes de ler o Bandeira. Eu ando para buscar a vida. Eu andei a vida inteira e agora cheguei a Vila Mariana.
Andar cinco, seis quilômetros não é mais a mesma coisa pra mim como era há vinte e cinco anos. Às vezes subir uma escada me cansa, ás vezes ir até a Vila Mariana me cansa, ás vezes lembrar muita coisa cansa.
Sair da Bela Vista e ir pra Vila Mariana a passeio. Deixar o barulho de lado, deixar a bagunça para trás. Encontrar quietude e algum mistério, casinhas com jardins, velhinhas de cabeça branca segurando vassouras, nada para limpar. Cachorros quietos, ruas de paralelepípedos, ninguém nas ruas. Fachadas intocadas, ruas retilíneas. Colegiais sardentas, uniformes de escolas particulares. Silêncio.
Entre prédios acho uma capela. Não sei o nome. Linhas retas, paredes brancas. A ausência de símbolos simboliza o quê?
As igrejas eram museus, guardadoras do belo. Minhas três igrejas. Na do Carmo toda aquela imponência me fascinava, a nave alta, as pedras marrom claro, as escadarias. Uma igreja clara, limpa, em ordem. A Consolação, sombria, suja, cinza. Mas tinha as estátuas dos apóstolos lá em cima na rua, estátuas prontas para voar. Pobrezinha Achiropita, pequenininha, humilde, atulhada de coisas, imagens, flores de plástico.O maravilhoso Padre Toninho, chamando a negrada pra igreja, perguntando: por que você não está aparecendo mais? O velho Achiropita na porta, xingando quem o chamasse de Achiropita. Sucedeu-o Dick, que se dizia cinegrafista do Terra em Transe. Na quadra da Achiropita só jogava quem assistisse a missa inteira. No meu primeiro jogo eu driblo todo mundo e faço o gol, meu rush característico.
- Dentro da área não vale. Não sabe jogar bola?! Palavras do Cri-Cri.
Dentro da minha característica sumi do jogo e nunca mais fiz nada naquela quadra.
De volta à capela da Vila Mariana. Sim, tem bancos de igreja e algumas imagens. São José está lá. Passei a curtir São José, depois de velho. Xangô Velho, Aganju carregando menino. Ser filho de Xangô, ter um ponto ostensivamente marcado na palma da mão, estrela de Davi, selo de Salomão, com bandeirinhas abertas nas duas pontas de cima da estrela, marcou muito em mim.
- Você é filho de Xangô.
A moça falou no serviço. E na rua uma vez alguém falou, e a cigana noutra vez. E a baiana. E eu li no livro.
Uma Bíblia aberta na capela. Elias subindo ao céu num carro de fogo. Conheço algumas passagens. Já vi uns cinco discos voadores.
Não consigo sentir nada na Igreja. Nunca vi Deus na Igreja. Gosto do silêncio, do cheiro, Proteção. Adoro Nossa Senhora,na hora da morte vou pedir por ela. Rezo as orações que minha mãe ensinou. Vou andando na rua e rezando.Peço muito a Deus. Vi Deus quando mais precisei dele. Encontrei com Deus em sonhos, igualmente encontrei com o capeta. Valei-me meu são José.
Minha prima Roberta pergunta:
- Mas você acredita?
Cortar o velho Deus de Barba, um velho ranzinza e mandão, o Deus do Creio em Deus Pai, me é muito difícil. Mas eu vou tentando, tateando. Eu quero acreditar, o que é uma coisa estranha. É uma necessidade, é fome. Deus se come-se.
Jesus é como um irmão. Um amigo. Imagino-me – lembro ? De estar por ali, caminhando junto. Na mesma armada. Gosto de Jesus expulsando os vendilhões do templo. Gosto de Jesus plenos pulmões no sermão da Montanha, para mim a mais bonita página de amor:
- Vinde a mim os que choram, pois que serão consolados.
Jesus é Oxalá, Krishna, Buda.
O sincretismo não é uma coisa que se esgotou, como quer o movimento negro. O sincretismo é a afirmação que em diferentes dimensões de tempo-espaço manifestou-se uma luz? Um fenômeno: Thor, Xangô, São José, São Jerônimo, Hórus, Shiva, Agni, Tupã, Júpiter. Isso existe. E isso se manifesta. Isso caminha e anda.
Na saída da capela uma jovem senhora me deseja boa tarde. Dou cinco passos um senhor com bonito suéter Lacoste me cumprimenta com a cabeça.
Céu azul sem nuvens, um ventinho. Gosto do frio. Carrego uma jaqueta, Adidas. O fato de ter um agasalho nas mãos já me esquenta. Comprei uma blusa usada quando tinha dezoito anos, paguei mil dinheiros. A primeira blusa. Veludo cinza. Foi minha companheira por anos. Hoje tenho trinta blusas. Antes não sentia frio. Tempo.
A pobreza é uma merda. Passar vontade é uma merda. Esquecer que existe vontade é a maior merda.
Estávamos quase na Barra Funda, num casarão velho. Uma garota nova na turma fala:
- Mas que cheiro de merda! Vocês não estão sentindo?
Eu me acostumei com o cheiro da merda. Todos ali estavam acostumados com o cheiro da merda. Tristeza.
Perto da caixa d’água da Vila Mariana uma rua, quase uma praça, ótimo lugar pra se jogar bola. Enquanto desço em direção ao sindicato me pergunto:
-O que não faço para não dar aula?
Ou melhor:
- O que faço pra não dar aula!
Espero não ouvir muitos gritos, discursos intermináveis sobre a “conjuntura”, assistir brigas estúpidas. O falatório durará quatro horas. Paciência.
Sento e espero.
Acordo num susto.
- E você Mauricio, o que acha disso?
-Venho aqui há três anos e nunca abri a boca. A situação foi eleita recentemente, e eu estou com a situação. A oposição critica, diz que falta mobilizar a categoria. Penso que a diretoria do sindicato escolheu negociar numa sala com a Secretaria da Educação. Infelizmente (palavra que repeti muitas vezes) isso é o possível no momento.
Minha fala é desconexa, parabólica, piegas, irônica, sem sentido, prolixa, contraditória. Quem me entende? Quem me lê?
“A gente conhece a nossa categoria” com essa fala o diretor do sindicato me ganhou. Ele a disse reservadamente, numa primeira conversa nossa, dois anos atrás. Desde então nos tratamos amistosamente. Encontramo-nos em outros lugares, e ele sempre foi educado. Nesses três anos que freqüento o sindicato, nunca ninguém da oposição me deu um boa tarde.
Zé Luis, figura impagável do planeta pesquisa de mercado, ao ser indagado por mim por que não dava bom dia quando entrava numa sala, respondeu:
- Bom dia a gente dá pra funcionário. Aos amigos eu dou beijos. Poc, poc.
Bom dia, Boa tarde, Boa Noite, Amor. Com licença, Muito Obrigado, Faça o favor.
Penso diferente do Zé. Tudo começa com um Bom dia. E ás vezes basta isso: um desejo de Bom dia.
Na minha fala não pude dizer:
- A gente conhece a nossa categoria.
Férias divididas, aumento parcelado para cinco anos, salários de trabalhador com ensino médio.
Alunos deitando e rolando, “não vou fazer nada”, "não coloca a mão em mim”. O professor falando com as paredes. Quarenta alunos na sala de aula, todo mundo gritando. O professor também tem que gritar, não pode sorrir. Os alunos não ficam surpresos com o funcionamento do mundo, ou com o funcionamento errado do mundo, não querem saber de nenhuma explicação. Não querem procurar nenhuma explicação. Oitenta por cento sem saber ler, nem escrever no 3º ano médio. Uma geração inteira formada com a promoção automática. Crianças com problema de aprendizagem, falta de concentração, cheias de problemas, sem pai nem mãe.
O “grupo gestor” da escola repetindo, com prazer perverso, o discurso do governo que a culpa é do professor.
Professor fala gritando e não tem conversa. È o factual, o cotidiano. É só aluno, aula, carreira, calendário. Não agüento a não conversa de professor. Reclamações.
Uma situação de merda, uma oposição de bosta. Um massacre contínuo promovido pelo governo. O que é necessário para o professor reagir?
O sindicato mobilizar?
Jamais pensei em ser professor, jamais pensei ser nada, fui sendo. Quis um tempo pra ficar sentado vendo a grama crescer. Deitei no chão e fiquei vendo um caminho de formigas por quase meia hora. Parei no Viaduto do Chá e dei risada da correria. Gente não nasceu pra formiga.
A esquerda e a direita valorizam o trabalho, sempre estive fora. Ninguém aprende nada sozinho, ninguém ensina ninguém. Cada um tem seu caminho, eu fiz o meu andando.
Ao final da reunião o representante da oposição quase encosta a mão em mim, pequeno sinal de reconhecimento, solidariedade? Um quase toque, um quase comprimento. Ele tem os cabelos brancos, usa um brinco. Numa reunião, num discurso, disse que o trabalho do sindicato seria acabar com a escola particular. Fala em salários de quatro mil reais, numa escola transformadora da sociedade. A oposição é trotskista. Essa fé na classe trabalhadora, na redenção dos povos, todos responsáveis, trabalho segundo as necessidades, governo internacional, é bonita até a página dois. Para mim.
Fica marcada uma assembléia pra próxima sexta-feira. Outro dia que eu não darei aula.
Vou voltar pra minha terra, de volta á BV.
Minha leitura é pouca. Desencanei de ler sobre teoria e tática e estratégia sem nem começar. Li o Manifesto Comunista. Trotski, biografia que o Leminski escreveu. Algumas páginas sobre Teoria do Valor, Formação de Preços na faculdade. Quase nada. Li sobre a Nomenklatura em 1979. Os assassinatos de Stalin, gente morrendo eletrocutada pulando o muro de Berlim. Enfrentando o mar numa banheira, fugindo de Cuba.
O comunismo é maior que Marx, é maior que Economia, é maior que Proudhon, Bakunin. Pra ser comunista precisa ler em alemão ou em francês? Precisa saber ler pra ser comunista?
Tanta coisa para ler e vou ler Trotski? Ou pior, leitura de orelha de Trotski? Ou ainda, leitura de alguém que leu Trotski e está traduzindo o que Trotski quis dizer?
Gosto do Apolônio de Carvalho, um meu herói
Essa guerrinha para saber quem é mais comunista é uma tolice. Os trotskistas se acham os comunistas.
Mas eu sou comunista, na falta de uma palavra melhor. Eu quero outro mundo, isso sim.
Numa das primeiras reuniões no sindicato perguntei para uma mulher pequena, que gritava muito, inflamada,muito brava, da oposição:
- Escute, você não é da Bela Vista?
Ela negou.
Acho que ela pensou melhor e viu que era muito feio negar. Chamou-me de canto, falou baixinho:
- Sou eu sim, só que naquele tempo, sabe, eu era da Igreja, muito bobinha e agora...
Naquele tempo ela vestiu-se da Carmem Miranda e dançou, representando o Maria José na TV Cultura.
Eu hasteei minha camiseta vermelha no 7 de setembro. O pátio lotado todos prontos pra cantar o hino Nacional e eu coloco a bandeira vermelha balançando no céu. Tinha eu quatorze anos.
Até hoje a ex-zeladora da escola, a querida Dona Geni, uma santa a quem nós beijamos a mão, me chama de comunista.
Na falta de uma palavra melhor vou assim mesmo. O Nacionalismo é abominável, mas o crime de lesa pátria é o pior que existe. O Internacionalismo, a cidadania terráquea, é um sonho maior. Qual é a função do Estado? Deixar a vida acontecer. Qual é a função de um governo?Promover a cidadania. É promover uma vida digna para todos. É proteger o carneiro das raposas.
Agora ser comunista me deixa muito sozinho. Briguei com meu pai por isso. Meu pai era do partido conservador. Eu sou do partido Terra Nova. E não brigo com minha família inteira, porque não quero brigar com minha família inteira. Do que resta das 150 pessoas que iam aos Natais na Vila Itororó, de todos os descendentes de Amador Bueno, só eu e o Márcio somos comunistas.
Ser de esquerda, do contra, acreditar no mistério – uau como é veloz esse beija-flor! – cansa, por isso eu sonho tanto que estou voando, e estou quase chegando.
Repenso, reverso.
inconsciência de classe
consciência cósmica
inexatamente em vós passeio
Comentar um texto não é fácil, principalmente quando este texto transmite tanta poesia em prosa. Prosa que quero ter a cada minuto, prosa que me faz querer entender-te e admirar cada dia mais. Fica aqui minha admiração e meu desejo de conseguir expressar-me como você.
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