domingo, 5 de fevereiro de 2012
Vila Itororó
Volto a Vila, a minha Vila. Quando o casarão tiver um novo destino eu estarei lá, andando e escutando os meus passos e, sofrendo, procurarei em algum canto alguma coisa que ainda é minha.
Escombros de escombros, tudo é ruína.
O escombro tornou-se adorno, Adorno esclarece a complexidade da Vila Itororó, quebra cabeças sem razão, o vento sacode minha cabeleira e eu me emociono de novo no passeio.
Eu escutei um pedaço de música num beco e queria que fosse um afrobeat. Mas não era.
De escombro em escombro a Vila renascerá, e é essa a história.
Escombros do Teatro São José, precursor do Theatro Mvnicipal, fantasmas das temporadas líricas. Manon Lescault, o dinheiro não é tudo, mas ajuda um bocado. Baderna é aclamada e torna-se adjetivo, o povo não é do jeito que queremos, e pode, e deve NÃO ACEITAR. Incontrolar-se, eles(os dicionários) não reconhecem a palavra, mas todos devem saber o que é: perder-se e achar-se. Aceitar a vida sem a faixa preta, “a dor e a delícia de ser o que é”, mas convenhamos não é bom apanhar o tempo inteiro, principalmente de si mesmo.
Manon Lescault, Baderna ,revoltam-se no túmulo. A beleza é a prova dos nove. Caruso assobia só uma parte da canção, esqueceu a música num beco imundo.
Becos sem saída, flores que insistem em nascer no cimento, no que foi escombro, voltou a ser e voltará a ser.
Encarcerada em minha memória uma "imagem" da vila que nunca existiu. É uma festa de família, cento e cinqüenta pessoas comem bebem amam, eu criei uma imagem, e ela tornou-se fato.
Últimos dias da Vila com pessoas. Tirar a gente da Vila é Gentrificação. Estou passeando na Vila e a palavra gentrificação, está pixada. A Vila será um Centro Cultural. Será que será?
O que será que será?
Andando eu penso, o que eu estou defendendo? Eu estou atacando. O que eu defendo é meu sonho, Rosebud, Madeleine, Vila Itororó.
Na caminhada veio, as lutas comuns de libertação, um compromisso com a minha classe, com os pobres.
São Paulo não vai conseguir expulsar os pobres, enobrecer o urbano, gentrificar-se inteira; a cidade é feia, os castelos são feios, os novos castelos são feios.Tudo é escombro.
A dinâmica é essa, constrói, derruba, constrói. tudo será derrubado, mas quem contará o sonho? Aqui eu sorri, aqui eu roubei-te um beijo.
O povo é feio, sujo e malvado, somos mal educados. Mas o povo não pode ser do jeito que a classe média quer. Ou o povo é do jeito que a classe média quer?
Entro no Beco. Fumacês e farinhadas a luz do dia. Enquanto a tarde passa ele, o Jovem, fuma e o outro
Jovem diz:
- Me dá mais um tranquinho.
A droga, é uma droga, é uma droga.
Flagrante do nada, do vazio, da adolescência que se perde, não identifica que não se satisfaz, mas que copia, copia.
O Jovem perde o tempo, o do relógio, o da estação, o trem passou e ninguém quis entrar nele.
O consumo é a lei, a música para as massas, o entretenimento para as massas, deixa o povo lerdo, mas a foda é corriqueira, rápida e sem tesão, pois é isso que eles estão ouvindo, o que canta o fim da canção.
Mas tudo pode ser explicado, tudo foi explicado. Aqui um Adorno.
"Nada é espontâneo, a indústria cultural é portadora da ideologia dominante, e coloca na ordem tudo, dá um sentido a ruína."
Mas eu tropeço no escombro, de novo o escombro,um caco de vidro que eu chamei diamante, a beleza perdida, o delírio que eu vim buscar, a minha sombra na escadaria, a família que não era a minha, as vozes no casarão. É cópia da cópia, mas criar do lixo, fazer um castelo do lixo é algo que ilumina à tarde.
E estão aí o leão, a carranca, a ponte, a fonte, os becos sem saída, as flores que nascem no cimento, a beleza das morenas, o sol, o sol, o sol.
Na caminhada restauro. Blaise Cendrars falou das cinco ou seis casas com azulejos portugueses, mas onde elas estão teriam sido violadas, estupradas também?
Do escombro o português fez o castelo, o navio, a nave espacial ancorada no vale. Aqui a genialidade apropriou-se, a cobra se comeu-se. A antropofagia nos redime, mas isso faz muito tempo.
Os jovens se drogam, os velhos assistem TV e tem saudade de alguma merda sem sentido. As janelas estão abertas e eles estão lá dentro fechados, dormindo, ou pior: alegres. Por que tanta alegria?
Para poder submeter-se a mecanização de amanhã, responde Adorno.
Os velhos bebem, pobres bêbados dormindo em sarcófagos dessacralizados. O puxadinho, o tabique, a contribuição brasileira para o enfeiamento de tudo, campeia. E qualquer canto virou casa. Embaixo das escadas ,em cada vão, foi feita uma toca e lá alguém dorme, alguém se esconde e sorri bestialmente, três dentes na boca, mas sorri, “sorri, e verás que é feelizzzzzzzzzzzzz”.
A beleza foi sendo destruída, há séculos tudo vai sendo destruído, uma geração vem e outra vai, castelos tornam-se sedimentos, e num sopro alguém escuta que deve-se construir um novo castelo e efetivamente o constrói. Então se constroem novos castelos que se tornarão tumbas. Que serão escombros e ruínas e serão saqueadas.Nada de novo debaixo do sol, e eu envelheço na cidade.
As tumbas dos antigos faraós estão sendo constantemente saqueadas. Escaravelhos, escorpiões, cobras e lagartos. E muitos ratos.
Quando finalmente tudo for destruído, os doutores, os moradores, a poder público e os leitores tirarão seu sorriso da cara e irão atrás de outros escombros. A polícia aparecerá com suas bombas em nome da lei e cumprimento delas.
Aqui mais um Adorno,que oscila na impossibilidade da criação de um refúgio, ou a busca nele, após o nazismo e o stalinismo, após a violência total. E o meu corpo balança, minha sombra na escadaria, mais uma vez, mais uma vez.
E o vento sacode a cabeleira, se eu tivesse um adorno nela voaria, que se exploda de toda forma o Adorno, e toda incapacidade de explicação, toda dor deve ser transformada, talvez seja essa a nossa última chance.
Olho para a nave ancorada, um navio ancorado no espaço da minha memória. Qual o destino dele?
Na caminhada a restauração, por que não? A cidade não é museu, não é um presépio, tudo está em construção, em deglutição, sobrou isso, sabe Deus como o navio ancorado na vila não naufragou.
Vem a restauração, mas o sonho não pode ser restaurado, serão outros sonhos, de outros. No meu sonho eu estou acordado, na nave ancorada procurando toda minha gente.
O casarão eu não sei o que será dele, o que haverá nele. Reuniões, um museu, a parte administrativa? Com tudo isso precisam ser construídos mais sanitários. Muita merda precisa ter um destino civilizado.
Estou muito cansado de tudo isso e a escadaria é cada vez maior quando se tem que subi-la.
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