segunda-feira, 24 de novembro de 2025

de vermelho e preto

 




Ela tinha saído para dar. Como se diz: saiu pra fuder. Desceu as escadas, se encontrasse alguém pelo caminho daria.

Conforme ela saiu ele encostou na parede e desabou. Chorava, como se diz:  - convulsivamente. Tremia-lhe o corpo todo; o choro convulso é aquele que a pessoa não tem controle, simplesmente não se consegue parar. O rosto vermelhão fica sobremaneira molhado, enrugado; o corpo rubro, desarranjado. Pegou o telefone, as mãos tremiam, tinha as unhas quebradas, os dedos doíam; discou um número com dificuldade, tentou de novo e mais uma vez:

- Manhêeeeeeeeeeeeeeeee!!!

Ainda não eram dez horas e desde que havia amanhecido eles já haviam transado três vezes; como se diz: - trepado três vezes.

Não se fez de rogado, contou à mãe.

Havia conhecido no bar do seu Luis na sexta feira meia-noite. Ele não gostava das sextas, como se diz:  - dia dos bêbados amadores. Chovia, como se diz:  - torrencialmente. A porta semiaberta semifechada; ela entrou. Estava seca.

Ela puxa para índia; fala essa língua de paraguaio – hoje o tempo é de venezuelano, então língua de venezuelano. Cabelo escorrido, enorme, na cintura. Preto. Petróleo. Parece índia, parece morena, parece mulata. Mais pra baixa, menos para gorda, cheinha. Lembrou agora falando pra mãe que os olhos não eram verdes, como era de se esperar, mas de um azul como não tinha visto: um azul quase preto, como se diz: - azul meia-noite.

Ela foi até o balcão e disse:

- Cachaça!

A voz saiu grave, contralto baixo, límpida e sonora, destoando do corpinho.

Seu Luis encheu um copo, ela segurou a garrafa.

Quem pôde, ou quis, saiu. Ele ficou.

A chuva parou, a garrafa secou. Ela olhou pra ele e disse:

  - Vou contigo.

Ela quis dar pra ele na esquina; levantou a saia, abriu a buceta com as mãos e disse:  - Vem.

Ele a segurou pelo pescoço e a levantou; ela sorriu.

O prédio velho na Luis Barreto, sem zelador, sem porteiro, a porta sempre aberta. Ela queria na escada, ele aplicou uma chave de braço e a empurrou aos tropicões escada acima.

Um homenzarrão. Andado nos quarenta; entre idas e vida, uma temporada na Bahia, uma etapa em Epitácio. Estava de volta ao Bixiga. Morava num apartamento cedido, quarto e sala, um luxo. O irmão trabalhava na Leroy Merlin, comprou em prestações, quinze anos. Quando acabou de pagar, um infarto, dois dias depois, como se diz: - fulminante. A mãe deixava ele morar lá sem pagar aluguel, prejuízo por prejuízo, menino sem juízo.

Hirsuto. Grandalhão. Folgado. Encrespado. Encardido. As mãos enormes; os antebraços de balconista português. Todos os dentes na boca. Sapato 45. Áspero.

Gabava-se de carregar motor de fusca no braço. Não tinha um único registro na carteira, nunca assinou um livro de ponto, bateu cartão; como se diz: - não nasceu pra ter patrão.

Sua vanglória era nunca ter falhado.

Gostava de briga, inclusive de faca.

Sua palavra era considerada. Sem vacilação.

No apartamento partiu pra cima dela como de habitude, como se diz:  - um estupro. Ela sorria.

Ficou em cima dela por sete horas. De lado, de pé, de quatro. Deitado, de cabeça pra baixo. No chuveiro, na cozinha, em cima da mesa e da mesinha, pendurado no lustre, na janela vendo os ônibus passarem no viaduto da 9 de Julho, em cima dela e ela sorria. O tempo inteiro.  Ora ela dava também gritos, ora parecia levitar; tremia o corpo, falava essa língua enrolada. Às vezes cantava canções infantis.

Não lembra de terem comido ou ido ao banheiro.

Á noite do sábado passaram nessa toada, ou como se diz: - nesse rock.

Domingo de manhã ele desmaiou. Acordou no fim da tarde, cheiro de fumaça e enxofre; escutou um barulho na sala. Três homens, dois crioulos enormes e um magrinho e uma velha estavam com ela. Uma sujeirada de copos, bitucas e um saco de ráfia com maconha saindo pela boca num canto. Teve forças para pegar o taco de baseball e acertar a cabeça de um negrão. Levou uma pernada e dois safanões e caiu de cabeça na mesa de centro. Desmaiou de novo.

Acordou no meio da madrugada com gosto de sangue. Estava desfalcado da TV de LED de 60 polegadas e de dois tamboretes – um par de bancos que ele mentia ter trazido da Bahia, mas ganhou numa rifa da Achiropita, coisa fina, talvez marroquina.

Começou a arrumar a bagunça, que era grande. Os vizinhos não acudiram, nem chamaram a polícia, estavam cuidando das próprias orgias.

Procurou a pequena pela casa; a encontrou quieta num canto lambendo uma ferida no braço esquerdo: um talho de quase vinte centímetros.

Ele pegou a corda do varal e a amarrou na cama, ela sorria. Gritou por ele, suplicando amor. Sacudia a cama, como no filme do exorcista. Ele pulou em cima dela sem outra alternativa.

O alvorecer não foi lindo, chovia e trovoava. Ela dizia versos; se ele conhecesse poesia... “no quiso tocar la orilla mojada, su bello caliente com moscas de plata”.

Exausto, exausto. O corpo escamava, grossas gotas de um suor preto escorriam dele. Sentia pontadas no peito e o pinto estava esfolado e sangrava. Parecia ter emagrecido dez quilos O sangue da cabeça estava coagulado de um lado, cheio de poeira. Do outro lado pus esverdeado. Estava acabado.

Olhou pra ela, dois olhos imensos, o azul meia-noite. O talho do braço, misteriosamente, havia sumido. A desamarrou, derrotado.

Ela num pulo, ainda nua, apanhou a jaqueta favorita dele, de couro marrom, lembrança da Evani, e saiu sorrindo.

Conheceu suecas na Bahia, e bichas em Epitácio. E israelenses, argentinas e árabes nesse velho Bixiga. E mais gaúchas, catarinenses e baianas. Negras e mulatas e japonesas no Vai Vai. Nunca havia topado com uma tipa dessas, como se diz: - algo sobrenatural.

A mãe pelo telefone falou para ele trancar a porta e abrir as janelas. Acender uma vela. Rezar um terço. Passar creolina na casa. Ponhar bicarbonato nos ralos.  Na primeira hora correr ao seu Ivan, pedir um banho de ervas, um passe. Recitou, e pediu para ele repetir, uma prece para afastar os maus espíritos.

Ele correu a trancar a porta. Quando jogava bicarbonato no vaso, lembrou do basculante da cozinha aberto. Correu em desespero.

Ao chegar na sala ela estava de vestido novo. Os olhos azul meia-noite enormes. Sorriu e disse:

- Cachaça!

 

sábado, 15 de novembro de 2025

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

fim dos tempos




não tem essa:
primavera!
essa marca já era.
inverno, verão
outono
tempo de poesia
de estio, folhas caindo
ah! o fim do calendário
o esgotamento de uma era



mágoa
mágoa
mágoa
mágoa
mágoa
mágoa
mágoa
água 


tensão
tensão
tensão
tensão
tensão
tensão
tensão
tesão