sexta-feira, 14 de setembro de 2012

meu limão, meu limoeiro





Naquela rua, que ninguém sabe o nome,tinha um limoeiro.

Naquela rua, que foi o que restou de uma outra rua , ou do quintal de algumas casas, rua que surgiu do faz de conta de algum prefeito - canetada de doutores, falta de planejamento, de visão xamânica e profética do vem a ser viver em conjunto - e que surgiu quando a Bela Vista foi rasgada para a criação de uma via expressa exclusiva para automóveis, tinha um limoeiro.

Nessa rua, uma ruazinha de nada, com edificações apenas em um lado,marginal à avenida marginal,  que é a Via Expressa que liga a parte Leste à Oeste da cidade de São Paulo, e  permanece invariavelmente congestionada, entupida de carros, e que chamam, erroneamente, cheia de trânsito, existiam, presumo, muitas árvores frutíferas: pitangueiras, amoreiras, jabuticabeiras, jambeiros, goiabeiras, andirobeiras, muricizeiros,  e pinhas e frutas-do conde e pindaíbas e mucuris e maracujazeiros, e inclusive limoeiros.

Embora eu não recorra a registros, por isso presumo, suponho que ali existisse esse extenso jardim de frutas, e de flores e naturalmente com toda essa beleza, pássaros.

Esse passado idílico de sonhos é, seria, sério, um lugar propício ao passeio despreocupado de amantes, um lugar afeito aos jogos e à vagabundagem, a contemplação, ao fluir e ao fruir da vida, coisas que eu almejava peremptoriamente em meus passeios, e finalmente descambavam por um sem número de lugares esquecidos e perdidos, sem nome, da Bela Vista.

Especialmente nesses passeios buscava a surpresa, o encontro inesperado, um olhar novo, a abertura de uma outra coisa, diferente daquele meu destino, que eu julgava definitivo, porém contraditoriamente ansiando, sempre, por coisas novas e belas.

Naquela rua, em que o viaduto que liga dois lados da cidade, ergue-se absoluto, sem majestade porém, e divide em dois a Bela Vista, particularmente ali, de um lado a casa da Dona Yayá (a que permaneceu em cárcere privado por décadas, porque queria amar e ser amada, e presumo, passear por entre as árvores e ali encontrar o inesperado, que todos esperam - o amor) e de outro lado o limoeiro, eu transitava sem majestade e igualmente preso a determinado destino,porém ansiando coisas novas e belas, descobrindo centenas de coisas, envolvido que estava na roda da juventude, atento à uma miríade de situações que permanecem, ainda, em uma espécie de bruma. 

Eu sei que meus sentidos na época estavam bastante dispersos, mas igualmente  aguçados. Eu andava cuidadoso com muitos detalhes, entre eles, quase que principalmente com minha sobrevivência - o que para juventude brasileira é tarefa cara, ou seja, sobreviver à juventude, resistir à loteria de assassinatos e violências, e ao canto da sereia e à tentação e a sensação de invencibilidade, as quais  ela, a juventude, é submetida.

Era uma tarefa cotidiana, pois bem: era preciso estar atento à minha sobrevivência.

Eu dedicava poucos dias ao trabalho,ficava dez dias num, três meses em outro, e muitos meses desempregado. Estudava no Centro Cultural, lendo os russos e os americanos e Leminski, (o caminho havia sido: Folha Ilustrada> Bukowski>Editora Brasiliense, daí: Ana Cristina César, Reinaldo de Moraes, Leminski, Bukowski)  mas estava sempre na casa do meu pai na hora do almoço e da janta.

Mas eu andava atento não exclusivamente a sobrevivência,ou a não ser atacado pela polícia ou por outros vagabundos, mas também á aquela miríade de detalhes que existe nas ruas.

Perscrutava platibandas e varais e pernas e mocós, e os altos das casas (algumas continham a data de construção delas) e sorrisos que não apareciam nas faces das morenas. Procurava cheiros e cores e sinais de fumaça que pudessem preencher as minhas tardes e meus pulmões e  buscava amores, mas não procurava um pé de árvore remanescente daquele estupro que aconteceu quando rasgaram o Bixiga para a construção da avenida.

Naquela rua, cujo nome nem mesmo agora eu sei, eu caminhava invariavelmente todas as tardes para o coração do Bixiga, e para o coração de todas as coisas que eu queria minhas, coisas aliás que eu nem imaginava pudessem ser minhas se definitivamente assim eu quisesse, envolvido na bruma do meu delírio, e preso à um destino que eu julgava definitivo; naquela rua existia um limoeiro, que eu descobri quando uma folha deste voou por cima do muro e veio flutuando por cima, por entre e ao lado e sobre o meu caminho.

Eu descobri o limoeiro pelo cheiro, e pelo sumo, da folha, e ali, naquela rua, etc., eu passei a ter a minha árvore.

E embora eu sentisse-me absolutamente tentado à apanhar limões, ou pelo menos uma folha da árvore, para que eu pudesse sentir o gosto, o sumo, o cheiro, o delírio, a bruma, o destino definitivo, o olhar atento, as platibandas, o sorriso que não aparecia na face das morenas, e todo o resto, e todo o resto, eu olhava o limoeiro, tocava as folhas, e então o limoeiro estava comigo.

Faz quase trinta anos que o limoeiro foi derrubado,cada vez mais cimento na cidade, eu não posso sequer tocar nas folhas, mas,maravilha, wonderful tonight, ma che cosa bella, ah definitivo destino, eis aqui as coisas novas e belas:

- Toda vez que eu passo naquela rua,embora não haja, o limoeiro é o meu limoeiro.

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